Esse relato, texto, crônica, documento histórico, como convém chamá-lo, é o expoente da genialidade de dois mestres. De um lado, o jornalista Glauber Lacerda, um "fi de Zé", como ele mesmo se auto denomina, que procurava a realização de um estudo "acadêmico" sobre o imortalizado poeta da nossa terra, o saudoso João Bolinha, e acabou por deixar um documento, um registro filosófico/poético, que bem pode ser confundido com uma mini biografia, dessa que foi uma das mais importantes figuras da nossa cultura local e da nossa história.
O encontro entre o poeta e o cineasta aconteceu em dezembro de 2008. Em agosto de 2010 o senhor João Pereira da Silva, eterno João Bolinha, veio a falecer, "escapando do viveiro ganhando o céu azul anilado e deixando seu espaço enlutado"
Confiram
JOÃO BOLINHA, UM PEIXE GRANDE Por: Glauber Lacerda
Maiquinique é um pequeno município do interior da Bahia. A cidade tem esse nome por conta do rio homônomo que a corta. A origem da palavra é indígena e significa “rio de peixes pequenos”. Hoje, o estreito leito tem pouca e poluída água no trecho próximo ao perímetro urbano. Quem não conhece a paisagem, dificilmente imagina que há 30 anos por ali passou um peixe grande que resolveu morar na terra e até hoje não quis voltar a nadar. O peixe é poeta, o poeta João Bolinha.
João Pereira da Silva, nome de registro dele, nasceu e despertou para as letras em Condeúba (BA). Assim como Patativa de Assaré, foi alfabetizado através do curso primário de Felisberto de Carvalho (1850-1898), autor de livros didáticos que deixou marcas na educação brasileira desde o período de transição entre a monarquia e a república até meados do século XX. Ainda menino, descobriu a paixão por Castro Alves e a vocação pela liberdade.
Com uma Rosa-dos-ventos, adornando o bolso do seu paletó, propagou versos por todos os cantos. Em Itambé (BA), ouviram-no muitas vezes. Em Montes Claros (MG), dedicou-se ao ofício de barbeiro. Quem pagava por barba, cabelo e bigode, ganhava um recital de brinde. Lá, Darcy Ribeiro se tornou seu cliente cativo. Outro fato marcante na cidade do norte de Minas foi uma valsa dançada por Juscelino Kubitschek, assistida por Bolinha. Ele jamais se esqueceu dos dotes de dançarino do presidente. Encontrou JK, anos depois em Brasília, e não resistiu, pegou na mão do mandatário e disse:
- O Senhor é um grande valsista!
Brasília, os homens e a cabeça
Era difícil fazer acordo no fio do bigode na capital federal, diferente do sertão de Bolinha. No interior da Bahia, quando alguém comprava alguma coisa e não tinha dinheiro para pagar, dava um fio de bigode como “promissória”. A grossura e a cor do pelo, avalizado por uma palavra firme, valiam mais que qualquer documento assinado por um homem. Já em Brasília, o que sempre valeu é o preto no branco, acordo oral muitas vezes é sinônimo de maracutaia. O poeta talvez não refletisse sobre esses assuntos cabeludos quando saiu de Montes Claros para assistir a inauguração do “novo eldorado” brasileiro e tentar fazer um “pé-de-meia”. O trabalho numa barbearia na Câmara dos Deputados e as poesias garantiram-lhe, respectivamente, pão e novos amigos por lá.
Por ser um “poeta tribuno”, como se auto define, João nunca precisou de papel para passar horas declamando Castro Alves, Augusto dos Anjos, Camilo de Jesus Lima e, claro, suas próprias poesias. Inspirado pelas curvas de Niemeyer, ele frequentou rodas de intelectuais, festas e saraus até o golpe de 64, quando um amigo o alertou:
– João, vá embora que os homens querem sua cabeça!
Se um desconhecido lhe pergunta, hoje, quem foi esse companheiro, ele traga profundamente o cigarro, bate a cinza, solta a fumaça e responde:
– Darcy Ribeiro!
– O Senhor conheceu o Professor Darcy Ribeiro? – delira aquele que pergunta.
– Um homem de uma capacidade incrível! – treplica sem dar muitos detalhes, dando asas à imaginação do curioso.
Como Brasília não tem mar para o peixe grande se entregar à imensidão, Bolinha procurou a primeira rodagem e saiu a flanar pelo Brasil. No caminho, conquistou muitos camaradas, muitos novos versos, muitos amores e, consequentemente, 22 filhos.
Maiquinique: a derradeira parada
A vida nômade se encerrou com a chegada a Maiquinique, em meados dos anos 70, onde encontrou sua amada, Nicinha, experimentou da água e constatou que ali deveria se banhar por muitos anos. Num terreno, na extremidade da cidade de então, construiu sua moradia, batizando-a poeticamente de “Sítio Pau Pereira”. Não por acaso, Pereira é o sobrenome de João e o nome da madeira que a meninada extrai a forquilha do estilingue.
Em Maiquinique, ganhou o sobrenome artístico, Bolinha, por conta de uma brincadeira de boteco. João apresentava uma esfera e três tampinhas de cerveja para um determinado sujeito. Na sequência, misturava a bola entre as tampinhas para o camarada adivinhar o destino final do objeto redondo. Se o camarada não acertasse, pagava a cerveja, fonte usada para desinibir versos.
Hoje, aos 84 anos, João Bolinha continua no “Sítio Pau Pereira” junto com Nicinha. A cidade cresceu em torno da propriedade, mas ele continua a cultivar seu templo. Planta seu próprio alimento, fabrica licores artesanais, pinta cabaças, reclama da saúde, escreve e sonha. O artista pretende transformar parte da sua residência na “Casa da Cultura João Pereira da Silva”.
Todos os interessados num bom papo cultural podem bater na porta da casa dele. Só precisa de um pré-requisito: ter muito tempo para ouvi-lo. Depois da segunda hora de conversa, é muito fácil associa-lo ao personagem Ed Bloom, do filme Peixe Grande (Big Fish. Tim Burton. EUA, 2003), exímio contador de história que, no delírio de morte, transforma-se num enorme peixe e continua a viver. Ed, prestes a falecer, explica para seu filho, Will, que o peixe só é grande porque ninguém consegue pesca-lo. João Bolinha idem.
Abaixo, duas poesias declamadas por João Bolinha. A primeira, "Eu e um punhado de versos", é do próprio poeta; a segunda, "O Tédio", é de Henrique Hine.
FONTE: http://www.fideze.blogspot.com.br/
1 comentários:
Perdemos o Poeta João Bolinha e logo depois ganhamos o cineasta GLAUBER "O NOME PROMETE", Professor da Universidade do Sudoeste; o texto e os videos acima mostram um encontro histórico da velha e nova geração de pensadores de Maiquinique e, porque não, do Brasil.
Parabéns mais uma vez Rafael.
Ass. Jesinho
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